23 de setembro de 2009

A Morte - David Nobrega

 Andar pelo centro podre de uma cidade grande é ao mesmo tempo causa de duas sensações completamente antagônicas: prazer e nojo.

Sou parte dessa podridão desde quando nasci de mãe puta e pai desconhecido. Minhas recordações de infância são basicamente o fedor: de loção barata dos homens a quem minha mãe atendia, o bolor do armário úmido que me servia de quarto quando havia "visitas" em nosso minúsculo apartamento e a fome, tão comum quanto inevitável, roubando odores de comidas vizinhas, alheias a nossos pratos vazios.

Cresci sem a educação dita formal. Aprendi a ler com o porteiro do prédio, homem doente que só se mantinha naquela função por trocar salário por moradia. Como comia, onde arranjava alimento, era para mim um mistério, como ainda é até hoje. Claro que já morreu há muito, mas ao me apresentar à arte de ler e escrever, sua imagem ficou como que gravada a ferro e fogo em minhas memórias. Outros cheiros de minha infância veem dele: couro velho dos livros, pele velha e murcha de seu corpo.

Hoje em dia não moro mais por estas bandas da cidade. Sou bem de vida, como costumava-se dizer em meus tempos de menino. Arrumaria facilmente uma vaga na finada pensão da Dona Lola, onde um cartaz escrito à mão dizia “Vagas para Senhores de Fino Trato”.

Venci sozinho. Melhor dizendo venci por meu esforço em compreender Dante, Rui Barbosa, Sócrates, Rosseau, Taunay, e tantos outros a quem tive a honra e prazer em ler. Culpa do raquítico porteiro, que dizia que um homem tem que primeiro entender o Universo para poder entender a própria vida.

Aos onze anos de idade minha mãe me enviou para trabalhar no cortume que ainda existe ali pelo lado do Arroio. Fedor... Mais fedor. O trabalho sempre em meio aos caldos de animais mortos, quente, abafado, perdia a respiração, bolhas em minhas mãos, e o fedor onipresente. Por ali castigaram meu corpo por longos três anos, fazendo de minha magreza aparente fortaleza. Consegui sair dali inacreditavelmente forte. Não gripava, não tossia, nada me doía. Nem o coração mais sentia, brutalizado pelos maus tratos e pelos abusos. Certa vez, outros rapazolas bem maiores que eu – e bem mais fortes – juntaram-se para me fazer entender quem era minha mãe. Eu deveria sentir-me puta como ela. Me surraram, me comeram, me cuspiram. Depois de satisfeitas todos as suas taras e malvadezas, jogaram uma nota de Real sobre meu corpo que sangrava. Nunca mais voltei para ali ou para qualquer lugar por onde houvesse sequer a mínima relação com minha mãe. Por culpa dela, primeiro em me fazer nascer e depois por me fazer parte de seu mundo imundo. E parti.

Esta tarde que caminho pelo Centro é a primeira vez, desde os fatos que lhes contei, que apareço por aqui. E só vim porquê fui chamado pela polícia para reconhecer o corpo de uma vadia que foi encontrado já meio decomposto e deformado. Não havia sinais de violência. Parece que a causa da morte foi velhice mesmo. Mas o laudo definitivo somente depois da autópsia. Se o senhor puder vir fazer o reconhecimento...

Fui, para provar a mim e aos outros que sou superior a tudo isso.

Cheguei ao endereço que me haviam dado e subi os dois lances da escada rangente até o andar correto. Na porta do apartamento a policial me ofereceu uma máscara para cobrir o nariz, que recusei. Eu queria sentir aquele cheiro de morte. Eu ansiava por poder ver e apalpar aquele corpo asqueroso, pobre, podre daquela que me pariu.

O quarto não era o mesmo, mas a disposição das poucas coisas que ela adquirira durante sua vida indecente, sim. Lá estava o armário úmido, hoje sem portas, onde tantas vezes me havia abrigado. A bacia de lata, com água suja, ainda fazia parte da decoração. Um crucifixo já sem cores – o mesmo? – sobre a cabeceira da cama, onde jazia um corpo disforme e fétido. Por um momento me senti de volta ao cortume e todas as memórias daquele lugar odioso.

“Pelo estado do corpo e pelo tempo que não a vejo, não posso lhes dizer nada” – disse-lhes eu – “mas pelos objetos pessoais acredito que realmente seja a pessoa que vocês pensam”. E saí do apartamento, para o ar pouco mais fresco daquele corredor imundo.

A mesma policial veio ter comigo, me estendendo um maço de cartas nunca enviada, todas com meu endereço. “Nós o achamos por meio disto. Talvez o senhor as queira ler, padre”.

Tomei aquele maço de papel de suas mãos e saí daquele antro quase correndo. E não olhei nem mais uma vez para trás.

 Em casa, tarde da noite, sentado de frente à lareira e com um bom vinho por companhia, mais uma vez passagens de meu passado desfilaram por minha frente. Minha fuga sem rumo, minhas noites frias sem abrigo, minha visão – embora eu saiba que agora que fora um delírio – ao ver a Igreja de portas abertas, como que me chamando. O padre Ambrósio, que me acolhera e me mandara ao Seminário.

Meus olhos pousaram mais uma vez sobre o maço de cartas. Com as pontas dos dedos o alcancei, imaginando o que estaria escrito ali. Palavras de perdão, pedidos de ajuda, xingamentos por não ajudá-la ou atendê-la todas as vezes que me havia chamado?

E sem pensar duas vezes joguei tudo ao fogo, que consumiu o último resquício de uma vida que não tive.

(Conto do novo livro do Autor a ser lançado pela Novitas em breve)



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