* Gustavo do Carmo
Os ratos serpenteavam no meio-fio. Baratas passeavam pelos bueiros. Os pardais piscavam ávidos para multar motoristas que avançassem o sinal. Os meninos de rua cheiravam cola sem cerimônia. Um deles desfilava com a sua pistola prateada como um vampiro sedento pelo sangue de suas vítimas, especialmente motoristas de carros de luxo.
Dona Marta e Regina caminhavam pela rua do subúrbio, sem medo de tudo isso. Pareciam protegidas, pois ninguém as ameaçava. Só um velho tarado parou na sua frente, abriu o sobretudo que o cobria e exibiu o seu pênis longo e flácido. Elas nem se importaram. O malandro com a canivete escondida, perguntou para onde elas iam, foi ignorado e não reagiu.
As duas mulheres não se assustaram nem com o camburão da polícia correndo na contramão da rua e com o tiroteio que começou a pipocar minutos depois. Continuavam observando a cena na alta madrugada: a dupla de travestis que fazia ponto na rua, o barrigudo careca caído bêbado na calçada, o grupo de jovens voltando da festa às gargalhadas, a prostituta se deixando possuir pelo cliente e os primeiros trabalhadores no ponto de ônibus. A lua começava a perder força com o azul ciano do céu.
Tudo o que Regina queria era comprar a primeira fornada do pão que saía às cinco da manhã na padaria do bairro. Reconstituindo um momento que viveu aos sete anos, quando a sua mãe, Dona Marta, a levou para esperar o pão sair quentinho.
Naquela época, o estabelecimento era mais simples e a cidade mais calma, sem pardais, menores armados e tiroteios. Mas já tinha drogas, sexo, bêbados, malandros e tarados. Trinta e cinco anos depois, Dona Marta, já uma frágil anciã, levava a filha para atender um pedido nostálgico, que poderia ser o último, pois Regina já fora desenganada pelos médicos que diagnosticaram um tumor cerebral.
* Gustavo do Carmo é formado em jornalismo e publicidade, publicou o romance Notícias que Marcam e a coletânea de contos Indecisos. Tem o blog http://www.tudocultural.blogspot.com/ . Seu twitter é www.twitter.com/gustavocarmo
Um comentário:
E ai Gustavo. Quando a gente não tem mais o que perder ( e eu acho que a gente sempre tem), o medo nos abandona. Se tivermos Deus no coração, ai a coisa fica bem mais fácil. Parabéns pelo bom texto.
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