17 de maio de 2010

Um milésimo de segundo - By Tatiana Cavalcanti

Um milésimo de segundo
* Tatiana Cavalcanti
Me dobrou em seis partes iguais, me colocou no bolso e sentou em cima de tudo que eu demorei mil anos para construir.
Meu castelo de paralelepípedos virou rabo de poodle que só come ração molhada. Dias demoraram vidas para passar. Ele enfiava o dedo indicador dentro do meu crânio, não adiantava lutar. Quanto mais eu queria esquecer mais ele cutucava o lado esquerdo do meu estômago que era para eu não digerir, para fazer parar a minha engrenagem perfeita e quase harmônica. Horas demoravam municípios para virarem.

Ele teve esse hábito. Veio cheio de razão, falando coisas que não eram para ele nem ninguém saberem. Bem menos falarem. Ele teve uma súbita vontade de avassalar com as certezas que eu cultivei a sol e água. E para isso, ele usou uma arma letal. E eu fiquei de estátua para não levar à queima roupa, no meio da testa, com requintes de crueldade. Ele fez uma leitura fácil, simplista, rápida. Ele me tirou do mundo numa piscada de olho, numa respirada rápida no meio da crise de bronquite que insistia em me perseguir há três noites. Ele me suspendeu de mim e me exportou para ele.

Ele socou dentro da minha cabeça que era tudo muito pouco e que o destino é a gente que desenha de acordo com a nossa coragem. E ele ouvia umas misturas de bossas com sambas que eu nunca vi nenhum gostar. Não daquele jeito charmoso que ele tinha de gostar das coisas. E ele
fazia que não estava nem aí para mim.

Ele pegou o centro da minha cabeça e colocou embaixo da sola do meu pé, do lado do bicho geográfico que eu devo ter porque coça muito. Ele me deixou falando sozinha uma vez. Claro que eu chorei. Mas bem pouquinho, só para molhar os cílios mesmo. Porque para ser paixão tem
que ser chorado, mesmo que só pra embaçar o olho. E para reliadade vir mais transparente como água.

Ele usou o perfume, ele usou as palavras, ele girou o mundo na ponta do dedo como os jogadores de basquete. Um milésimo de segundo. Foi o tempo que ele teve para fazer tudo isso que ele fez.


* Redatora e autora da Editora Novitas. Escreve no blog http://coffeeandhistory.blogspot.com/


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