UTI
*David Nobrega
Se me encontro aqui hoje, é por persistência. Minha vontade de viver é maior que essa profusão de tubos que me mantém vivo.
Há exatos 6 anos, sofri um gravíssimo acidente, enquanto me encaminhava para o trabalho. Estava chovendo e eu, em minha imprudência valente dos motoristas com algum tempo de habilitação, dirigia a toda velocidade, desviando de poças e buracos de minha cidade. Não estava atrasado nem nada, mas dirigir de maneira agressiva tornou-se um hábito, independente do compromisso ou do leito pelo qual trafegasse.
Sabe quando você usa óculos e não nota a sujeira se acumulando nas lentes? Parece que o mundo vai perdendo a cor pouco a pouco, chega a pensar que necessita de uma nova consulta com seu oftalmologista, quando na verdade basta uma boa lavada em seus óculos para que tudo retorne a normalidade. Aconteceu algo parecido na hora do acidente: embaçou o vidro, eu me esforçava para enxergar, não vi o caminhão parado na esquina que entrei derrapando pelo excesso de velocidade e deu no que deu. Até hoje, passados tantos anos, me lembro dos números da licença, mal-escritas em vermelho contra o fundo verde da carroceria de madeira.
Quando acordei estava saindo de uma cirurgia, onde repararam um pulmão perfurado, extraíram meu baço, costuraram alguns pontos em meus intestinos e remendaram alguns tantos ossos partidos, principalmente em meu rosto, braços e pernas. Pela dor que sentia não poderia precisar em quantos lugares eu sofrera algum tipo de injúria. Apaguei de novo e só acordei meses depois...
Minha primeira recordação aqui da UTI foi a de um enfermeiro me virando para trocar os lençóis. Não sei se vocês sabem, mas os colchões que se usam nos hospitais são revestidos com uma capa plástica, o que faz com que nós, enfermos, transpiremos como uma bica sobre o lençol. É desconfortável mas limpo. Ao menos trocam as roupas de cama uma vez ao dia.
Minha esposa e meus filhos têm vindo me visitar, ela mais que eles. No começo tinham que barrar minhas visitas, mas com o tempo foram rareando, sobrando apenas a presença diária de minha esposa. Muitos já me condenaram. Estou morto para o mundo e esqueceram de me enterrar. Ouvi isso da boca de um de meus melhores “amigos”, em sua última visita.
É interessante quando pensam que você não ouve o que dizem. Quase uma sensação vouyerística, se me permitem o termo. Dizem uns aos outros coisas que jamais diriam na minha frente. Como quando um meu conhecido, cliente de longa data, aproveitou o sofrer de minha esposa e, colocando-lhe a mão sobre o ombro, quis consolá-la de uma maneira não muito galante. Dois sonoros tapas dados por ela foram o suficiente para que ele se afastasse, não antes de jurar que ela ainda seria sua. Que ainda ela o procuraria. Esse também nunca mais apareceu.
Ao lado de minha cama existe outra cama e enfileiradas até o outro lado da imensa sala que é esta UTI, outras mais. Quando me viram de uma lado para o outro para que meu corpo não fique em feridas pelo contato do maldito colchão eu consigo vê-las, iguais em sua forma, diferentes em seus conteúdos. Meu divertimento consiste hoje em descobrir quem seriam essas pessoas, assim como eu enfileirados a espera de suas mortes.
Na cama mais próxima de mim, à minha esquerda, um paciente asiático, já idoso, teve um derrame. AVC – Acidente Vascular Cerebral. E H, de Hemorrágico. Sinto que se um dia conseguir sair daqui posso clinicar como médico por aí, pois tenho aprendido muito nesta minha universidade forçada. Esse paciente, meu vizinho, deve ter lá seus 65 anos, pouco mais, pouco menos. Seus visitantes são sempre engravatados, aparentados a ele de alguma maneira. Senhora chorosa não há, pelo que suponho seja ele viúvo. Logo mais torno a lhes contar algo que sei deste meu vizinho.
Pelo que consigo ver de onde me encontro, deitado sobre meu lado esquerdo, com o respirador também a minha esquerda, enriquecendo meu sangue com ar puro, existem ao todo mais oito pacientes.
Numerando-os de 1 a 9, sendo eu o nono, a primeira cama e o ocupante do quinto leito sofrem de uma tal SARA. Não sei o que significaria isso, mas coisa boa não é, já que vi outros pacientes anteriores com esse mal morrerem em questão de dias.
Ocupando a segunda posição de nosso hit-parade, temos um infartado que acabaram de operar e colocar um marca-passo. Coisa sem graça que nem vale o sacrifício dos comentários.
No terceiro leito, sempre “de lá para cá”, um outro acidentado. Esse teve menos sorte que eu. Perdeu duas pernas.
O número 4 é interessante e não o perco de vista; é um assaltante perigoso, mas que tem convênio médico, baleado em uma perseguição policial. Eu fiz das tripas coração para poder pagar meu convênio, caríssimo. Esse sem-vergonha, bandido, tem o mesmo convênio que o meu. Garanto que aquele meu carro roubado há alguns anos financiou também o convênio de algum desses safados. Coisas da vida. Fico rezando para que algum dia seus comparsas invadam a UTI para tentar resgatá-lo. Ao menos um pouco de emoção em minha vida...
Número 6. Uma mulher. Teve, segundo um dos médicos comentou com outro, pré-eclampsia. Algo sobre a pressão subir demais na hora do parto ou algo assim. Coitada...nem vai conhecer o filho. Está já sem sinais cerebrais e vão desligar seus aparelhos logo, logo.
Apresentados meus colegas, me permitam retornar a meu colega aqui ao lado, que apesar de inconsciente não precisa dessa parafernália toda que tenho para mim para poder viver. O bom velhinho, pelo que entendi, não tem nada de bom. Mafioso, segundo ouvi comentarem. Trazia contrabando da China e revendia aos R$ 1,99 por aí. Coisa que, se entendi direito, além de acabar com os comércios locais ainda fazia com que estes transformassem suas lojas em pontos de venda de seus produtos piratas. O comércio em si era uma grande fachada que encobria, entre outras coisas, tráfico de escravos, jóias e drogas. Ou seja, o perfeito capitalista selvagem.
Corre a boca pequena, entre murmúrios que escuto da boca da enfermagem, que sua doença não tinha nada a ver com o verdadeiro motivo dele estar ali. Dizem eles que alguém da família havia tentado envenená-lo e o filho mais velho estava pagando para manter o pai naquele local, pois temia que se o levasse para casa, tentando fazer com que ali se restabelecesse, tentassem mais uma vez matá-lo. Se pedirem minha opinião, de quem, está a anos presenciando de tudo que por aqui acontece, diria que quem quer dar cabo do velho é o sobrinho com cabelo tingido.
Poucos antes deste texto ser escrito, monges budistas vieram orar pelo semi-defunto, tentando encaminhar sua alma de volta para seu corpo. Ou não, sabe-se lá se o chinês loiro não está metido nisso, querendo de vez despachar a alma do tio.
Começaram com um cântico lento, uma campainha soando ao fundo. Querendo ou não, você acaba fixado nos sons por ele emitidos. A cantilena vai ficando cada vez mais rápida, como se uma onda estivesse se formando nas profundezas do oceano. Cada vez mais os sons, embora não passem de murmúrios quase inaudíveis, vão se tornando uma espécie de zumbido grosso, como um zangão.. Não sei lhes explicar...seria como se você pudesse “apalpar”, “tocar” , na realidade um “sentir-se tocado” pelos sons.
Não sei mais nada quanto ao velho ali ao lado, mas em mim o ritual teve seu efeito. O que dizem de uma tal luz brilhando no final do túnel é quase que uma verdade total. Quando dei por mim estava de pé, olhando para meu corpo morto, embalado por uma música suave e, acreditem, banhado pelo sol da manhã, que jorrava sobre mim vinda diretamente de algum lugar sobre minha cabeça. Nada mudou, mas ao mesmo tempo me sinto livre. Se alguém conseguir psicografar isto, por favor, avise minha mulher do seguro que está em meu cofre. Despeçam-se de meus filhos. E diga àquele safado que cantou minha mulher ao lado de meu leito, que quando ele sentir um arrepio na espinha, sou eu ali, cuidando para que ele sinta medo pelo resto da vida.
Há exatos 6 anos, sofri um gravíssimo acidente, enquanto me encaminhava para o trabalho. Estava chovendo e eu, em minha imprudência valente dos motoristas com algum tempo de habilitação, dirigia a toda velocidade, desviando de poças e buracos de minha cidade. Não estava atrasado nem nada, mas dirigir de maneira agressiva tornou-se um hábito, independente do compromisso ou do leito pelo qual trafegasse.
Sabe quando você usa óculos e não nota a sujeira se acumulando nas lentes? Parece que o mundo vai perdendo a cor pouco a pouco, chega a pensar que necessita de uma nova consulta com seu oftalmologista, quando na verdade basta uma boa lavada em seus óculos para que tudo retorne a normalidade. Aconteceu algo parecido na hora do acidente: embaçou o vidro, eu me esforçava para enxergar, não vi o caminhão parado na esquina que entrei derrapando pelo excesso de velocidade e deu no que deu. Até hoje, passados tantos anos, me lembro dos números da licença, mal-escritas em vermelho contra o fundo verde da carroceria de madeira.
Quando acordei estava saindo de uma cirurgia, onde repararam um pulmão perfurado, extraíram meu baço, costuraram alguns pontos em meus intestinos e remendaram alguns tantos ossos partidos, principalmente em meu rosto, braços e pernas. Pela dor que sentia não poderia precisar em quantos lugares eu sofrera algum tipo de injúria. Apaguei de novo e só acordei meses depois...
Minha primeira recordação aqui da UTI foi a de um enfermeiro me virando para trocar os lençóis. Não sei se vocês sabem, mas os colchões que se usam nos hospitais são revestidos com uma capa plástica, o que faz com que nós, enfermos, transpiremos como uma bica sobre o lençol. É desconfortável mas limpo. Ao menos trocam as roupas de cama uma vez ao dia.
Minha esposa e meus filhos têm vindo me visitar, ela mais que eles. No começo tinham que barrar minhas visitas, mas com o tempo foram rareando, sobrando apenas a presença diária de minha esposa. Muitos já me condenaram. Estou morto para o mundo e esqueceram de me enterrar. Ouvi isso da boca de um de meus melhores “amigos”, em sua última visita.
É interessante quando pensam que você não ouve o que dizem. Quase uma sensação vouyerística, se me permitem o termo. Dizem uns aos outros coisas que jamais diriam na minha frente. Como quando um meu conhecido, cliente de longa data, aproveitou o sofrer de minha esposa e, colocando-lhe a mão sobre o ombro, quis consolá-la de uma maneira não muito galante. Dois sonoros tapas dados por ela foram o suficiente para que ele se afastasse, não antes de jurar que ela ainda seria sua. Que ainda ela o procuraria. Esse também nunca mais apareceu.
Ao lado de minha cama existe outra cama e enfileiradas até o outro lado da imensa sala que é esta UTI, outras mais. Quando me viram de uma lado para o outro para que meu corpo não fique em feridas pelo contato do maldito colchão eu consigo vê-las, iguais em sua forma, diferentes em seus conteúdos. Meu divertimento consiste hoje em descobrir quem seriam essas pessoas, assim como eu enfileirados a espera de suas mortes.
Na cama mais próxima de mim, à minha esquerda, um paciente asiático, já idoso, teve um derrame. AVC – Acidente Vascular Cerebral. E H, de Hemorrágico. Sinto que se um dia conseguir sair daqui posso clinicar como médico por aí, pois tenho aprendido muito nesta minha universidade forçada. Esse paciente, meu vizinho, deve ter lá seus 65 anos, pouco mais, pouco menos. Seus visitantes são sempre engravatados, aparentados a ele de alguma maneira. Senhora chorosa não há, pelo que suponho seja ele viúvo. Logo mais torno a lhes contar algo que sei deste meu vizinho.
Pelo que consigo ver de onde me encontro, deitado sobre meu lado esquerdo, com o respirador também a minha esquerda, enriquecendo meu sangue com ar puro, existem ao todo mais oito pacientes.
Numerando-os de 1 a 9, sendo eu o nono, a primeira cama e o ocupante do quinto leito sofrem de uma tal SARA. Não sei o que significaria isso, mas coisa boa não é, já que vi outros pacientes anteriores com esse mal morrerem em questão de dias.
Ocupando a segunda posição de nosso hit-parade, temos um infartado que acabaram de operar e colocar um marca-passo. Coisa sem graça que nem vale o sacrifício dos comentários.
No terceiro leito, sempre “de lá para cá”, um outro acidentado. Esse teve menos sorte que eu. Perdeu duas pernas.
O número 4 é interessante e não o perco de vista; é um assaltante perigoso, mas que tem convênio médico, baleado em uma perseguição policial. Eu fiz das tripas coração para poder pagar meu convênio, caríssimo. Esse sem-vergonha, bandido, tem o mesmo convênio que o meu. Garanto que aquele meu carro roubado há alguns anos financiou também o convênio de algum desses safados. Coisas da vida. Fico rezando para que algum dia seus comparsas invadam a UTI para tentar resgatá-lo. Ao menos um pouco de emoção em minha vida...
Número 6. Uma mulher. Teve, segundo um dos médicos comentou com outro, pré-eclampsia. Algo sobre a pressão subir demais na hora do parto ou algo assim. Coitada...nem vai conhecer o filho. Está já sem sinais cerebrais e vão desligar seus aparelhos logo, logo.
Apresentados meus colegas, me permitam retornar a meu colega aqui ao lado, que apesar de inconsciente não precisa dessa parafernália toda que tenho para mim para poder viver. O bom velhinho, pelo que entendi, não tem nada de bom. Mafioso, segundo ouvi comentarem. Trazia contrabando da China e revendia aos R$ 1,99 por aí. Coisa que, se entendi direito, além de acabar com os comércios locais ainda fazia com que estes transformassem suas lojas em pontos de venda de seus produtos piratas. O comércio em si era uma grande fachada que encobria, entre outras coisas, tráfico de escravos, jóias e drogas. Ou seja, o perfeito capitalista selvagem.
Corre a boca pequena, entre murmúrios que escuto da boca da enfermagem, que sua doença não tinha nada a ver com o verdadeiro motivo dele estar ali. Dizem eles que alguém da família havia tentado envenená-lo e o filho mais velho estava pagando para manter o pai naquele local, pois temia que se o levasse para casa, tentando fazer com que ali se restabelecesse, tentassem mais uma vez matá-lo. Se pedirem minha opinião, de quem, está a anos presenciando de tudo que por aqui acontece, diria que quem quer dar cabo do velho é o sobrinho com cabelo tingido.
Poucos antes deste texto ser escrito, monges budistas vieram orar pelo semi-defunto, tentando encaminhar sua alma de volta para seu corpo. Ou não, sabe-se lá se o chinês loiro não está metido nisso, querendo de vez despachar a alma do tio.
Começaram com um cântico lento, uma campainha soando ao fundo. Querendo ou não, você acaba fixado nos sons por ele emitidos. A cantilena vai ficando cada vez mais rápida, como se uma onda estivesse se formando nas profundezas do oceano. Cada vez mais os sons, embora não passem de murmúrios quase inaudíveis, vão se tornando uma espécie de zumbido grosso, como um zangão.. Não sei lhes explicar...seria como se você pudesse “apalpar”, “tocar” , na realidade um “sentir-se tocado” pelos sons.
Não sei mais nada quanto ao velho ali ao lado, mas em mim o ritual teve seu efeito. O que dizem de uma tal luz brilhando no final do túnel é quase que uma verdade total. Quando dei por mim estava de pé, olhando para meu corpo morto, embalado por uma música suave e, acreditem, banhado pelo sol da manhã, que jorrava sobre mim vinda diretamente de algum lugar sobre minha cabeça. Nada mudou, mas ao mesmo tempo me sinto livre. Se alguém conseguir psicografar isto, por favor, avise minha mulher do seguro que está em meu cofre. Despeçam-se de meus filhos. E diga àquele safado que cantou minha mulher ao lado de meu leito, que quando ele sentir um arrepio na espinha, sou eu ali, cuidando para que ele sinta medo pelo resto da vida.
*Nascido em São Paulo, capital, em 28 de Novembro de 1966.
Escreve poesias, contos e fotografa - não necessariamente nessa ordem.
Durante o ano de 2008, editou a capa do livro Ensaios Amadores de autoria de sua esposa, a poetisa gaúcha Letícia Coelho. Editou também a capa e orelha do livro D'Acolá, de autoria do escritor baiano Marcos Pontes, pela editora Os Viralata. Ainda em 2008, esteve presente na exposição Porto Alegre: imagem e poesia, com fotos e poesias de sua autoria, em Julho e em Setembro, participou do Projeto Zine Lapa, no Sesc Lapa, São Paulo, com fotos de sua autoria.
Já em Janeiro de 2009, lançou seu "Uns & Outros", livro de contos e desencontros.
Participou e organizou a I Coletânea Scriptus - Um Balaio de idéias.
É um dos fundadores e editores da Editora Novitas, todas as capas de livros lançados pela Editora Novitas são de sua autoria.
6 comentários:
Um lindo conto, cheio dos detalhes pelos quais passa quem vive numa UTI , sobreviveu e depois vê-se diante da morte...Um relato verdadiro e forte,passando por todas as fases...muitas visitas,depois raras e ainda os que querem sacanear...abração,chica
Parabéns David, seu texto está muito bem urdido e tal e qual interessante, na medida em que vamos lendo, vamos "comendo" as frases com aquela vontade de saber o que vai acontecer com a viagem e seu viajante.
Um toque de humor tempera com sucesso o desfecho.
Concluindo, confesso que o tema agrada e aguça nossa curiosidade.
Abraços!
Lu C.
DAvid
Seu texto é daqueles que se Lê em uma só respiração. Muito bom , parabéns.
Rose
Puxa,adorei.Bem real e ao mesmo tempo imaginoso.Parabéns.
Caramba David,
seu conto em narrativa na primeira pessoa traz a surpresa no final, quando o leitor percebe que a passagem pela UTI era recordação. Descreves bem uma "viagem" numa UTI, quase vi as luzes fluorescentes que passam rápido quando se está sendo levado em uma maca por um corredor longo ao leito da UTI.
abraços
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