Shh! Ele quer paz.
* Tatiana Cavalcanti
Silêncio. Tic-tac. O som alto do relógio incomoda porque afinal é para cessar os ruídos. Só se pode ouvir o respirar. Ele está em busca da paz e esse relógio maldito tira a paz e faz tudo ficar com a cara do infernal, com a cor do fim do mundo e com esse barulho ensurdecedor de micareta nojenta. Quebra esse relógio senão ele vai me mandar para puta que pariu já já. Então, por favor alguém, enquanto escrevo esse texto abarrotado de agonias e lágrimas para coleção, faça qualquer coisa mas cale esse tica-tac tão irritante quanto meus passos rumo ao banheiro toda madrugada segurando o xixi para ele não se esvair buraco afora.
Hoje cada um no seu canto, não me olha e nem me cheira por favor que hoje, amor, hoje eu não estou a fim da sua cara de chata com essa espinha branca na bochecha esquerda, suas muitas desgraças, esse choro que me enjoa a alma e com esse esforço físico, bonitinha, que eu não reconheço como obrigatório mas como opção. Se vocês não quiserem ainda mais choros cravejados com soluços quebrem, torrem, fodam, façam com ele o que fazem com os pratos nos jantares gregos tradicionais. Mas aquietem esse meu sufoco porque eu estou aqui com uma solidão terrível, cruel e que fere. Fere no começo da carne que é para a dor ser constante e para demorar para passar. E tem que ficar roxo pelo menos 23 dias se não não vale. Hoje, meu bem, você pode chorar que não quero saber porque esse tic-tac está me deixando desesperado pelo silêncio e pela paz infantil que fazem da sua busca tão eterna quanto a minha. O mundo voando, milhares de luzes, setecentas mil informações por milésimo de segundo e paz. Eu aqui, tentando acreditar que sou mais generosa, que fico mais tranquila com o corte das cesáreas cicatrizando e querendo sempre um pouco mais de mim que é para você me querer mais ainda. E nada. Paz. Uma paz que eu nunca busquei porque eu nunca acreditei que existisse. Então hoje fica assim. Você lá no seu canto norte e eu aqui no meu canto sul até que esse relógio pare com esse tic-tac tão ensurdecedor no meio dessa busca infinita e de tantas coisas para serem ditas se a gente não quiser morrer cada um no seu canto. Você no seu canto no quarto e eu no meio canto na sala ao lado do vaso de orquídea.
Tic-tac. Se alguém não silenciar esse relógio agora e se eu não continuar agarrada a esse silêncio que não forma uma boa dupla comigo ele vai entender tudo daquele antigo jeito. O silêncio da paz e eu aqui lavando roupa e deixando a máquina se esgoelar na centrifugação só para atrapalhar o sossego. E agora que eu desligo a máquina vem esse tic-tac ridículo colocando tudo a perder e reclamando que a gente sempre perde a hora de aparar. O som está cada vez mais alto mesmo sendo hoje, um som de silêncio fúnebre e tenebroso. Hoje estava bom de morrer para eu ver que eu faço falta e que o mundo, mesmo que seja só o dos meus filhos, sente por mim, sente comigo e quer entender como é sofrer tanto mesmo sem querer. Eu não quero paz nem razão. Quero colo. Hoje estava bom de morrer porque eu ia direto para o colo.
Mais outro tic-tac e ele me deixa aqui no meu canto. Nesse canto frio apesar do sol. Nesse canto com brisa e solitário apesar dos filhos. Nesse canto cinza apesar das flores que andei comprando. Nesse canto onde eu só tento um tico de compreensão e outro tico de amor próprio. Nesse canto que é todo e só porque a única pessoa que cabe aqui sou eu.Vai lá, por favor, quebra o relógio e resolve esse nosso problema porque eu nasci subversiva demais para ficar mostrando o loló assim. Ele precisa de paz e eu continuo deixando tudo mais atormentado como de costume para deixar o velório dele com cara de Carnaval.
Afinal de contas foi ou não foi para isso que eu nasci?
* Tatiana Cavalcanti é escritora e redatora.
http://coffeeandhistory.blogspot.com
Contato:tatianarcavalcanti@gmail.com
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