11 de dezembro de 2009

Ontem eu sonhei com Nova York - By Bruna Maria

Ontem eu sonhei com Nova York

*Bruna Maria

Amanhecia. O céu naquela cidade nunca ficava claro. Diziam que era culpa da neve. Era o inverno. Era minha culpa. Afinal eu tinha decidido que chegaria ali exatamente no inverno. No rigoroso inverno.
Nas primeiras semanas eu limpava as privadas de um posto de gasolina. De certa forma era um alívio: aquele era o tipo do trabalho em que eu não era notada. Meus passos com pesadas galochas de borracha; minhas mãos com luvas amarelas, também de borracha, carregando baldes e esfregões. E, ao final do dia, a certeza de ter desfeito a merda de uma centena de norte-americanos que passavam por ali para reabastecer seus carros.
Os dólares que eu recebia ficavam dobrados em um bolso escondido, no interior da minha roupa especial contra o frio, que uma prima que tinha voltado ao Brasil me dera dias antes de eu embarcar em busca de uma busca sem nome e sem endereço. Daquilo que eu guardava, não sobrava muito quando vinha o dia de pagar pelo aluguel do quarto em que eu dormia. Dividido com um boliviano, o quarto ainda me custava caro. E foi por isso que em um dia de centrada razão, eu decidi abandonar aquele lugar, e ir tentar abrigo em uma Igreja protestante de subúrbio.
Passei algumas semanas na certeza de que, em algum momento, eu seria aceita por algum bondoso pastor. Eu me oferecia para limpar suas Igrejas, passar o cadeado no portão ao cair das noites ou, simplesmente, ajudar na organização dos cultos. Mas poucos pastores chegavam a me ouvir. E, os que ouviam, alegavam que já tinham alguém que fizesse tais serviços para eles.
Quando percebi que tinha se passado quase um mês desde que eu abandonara a metrópole em busca de abrigo no subúrbio, nada tendo conseguido, decidi voltar para a cidade e tomar de volta o emprego no posto de gasolina, que eu tinha largado. Mas o chefe, me vendo voltar, foi categórico e ríspido. Coisa de americano. Disse que não tinha nem conversa; afinal, ninguém largava o emprego da forma que eu larguei. Então agora o problema era todo meu.
Eu tinha apenas vinte dólares a essa altura. Já não podia fazer refeições, tampouco pernoitar em algum motel. Decidi que guardaria o dinheiro para alguma emergência.
Sem poder dormir pelas ruas, já que os policiais eram sempre severos, decidi sair da cidade andando, até chegar a alguma “highway” onde eu pudesse, esticando o polegar, pedir carona aos carros, para chegar ao interior. Era a minha chance.
Consegui a ajuda de três sujeitos. Eles me ofereceram carona em diferentes partes da estrada e, um deles, ainda pagou um pernoite para mim, enquanto ele também dormia para descansar e pegar a estrada novamente no dia seguinte.
Com a ajuda desses sujeitos, e após alguns dias, cheguei a um rancho. Instalei-me pelos celeiros e fiquei por lá, beliscando comida de animal e me escondendo toda vez que o fazendeiro se aproximava. Em uma semana, consegui descobrir que o fazendeiro era um sujeito idoso, e que o rancho não tinha grandes movimentações. Supus que o velho morava sozinho e achei que me seria fácil abordá-lo, implorando um serviço qualquer.
No cair de uma tarde mais gelada que o comum, me arrastei até a entrada do rancho, e chamei pelo senhor, que jogava sal na neve. “Hello, hello”, eu gritei com custo. Sentia-me fraca e a ponto de desmaiar.
O velho veio com uma pá na mão e com a cara fechada. “Go away”, ele resmungou e fez menção de me espantar com aquele instrumento ameaçador.
“Food, please. Job. I need help, no where to go”, eu murmurava, tentando projetar a fraca voz que me escapava da garganta. Mas o velho parecia irredutível e repetia com amarga revolta seu “Go away” ácido e terrível.
Nesse momento comecei a pensar se não teria sido melhor ter fica pelos celeiros, comendo a comida dos bichos e me esquentando na serragem. O velho nunca saberia da minha presença. O estúpido americano me ajudaria sem ao menos saber. E quando a primavera chegasse, eu partiria em busca de outro modo de sobreviver.
Após tal devaneio, percebi que não teria onde dormir naquela noite que prometia um frio ainda mais intenso. Alguns flocos de neve começavam a cair e o velho insistia em me mandar embora, sem ao menos me ouvir.
Diante daquele impasse, algo na minha suposta humanidade começou a me transtornar. E, conforme o velho levantava a pá para me expulsar qual se expulsa animais intrusos, a sensação de fraqueza subitamente começava a se transformar em raiva e revolta. Eu era pessoa, como ele. Eu estava rogando por ajuda. E ele permanecia irredutível.
Com o ímpeto de revolta que me surgiu, pulei a cerca que me separava do velho, e parti para cima dele. Ele caiu no meio da neve e eu fiquei por cima de sua barriga estufada de bacon e ovos mexidos. Tomei a pá de sua mão, enquanto ouvia, em seu acesso de tosse velhaca e rouquidão, aquele desprezível “Go away” infinito e desumano.
“I was only asking for some help, you redneck”, esbravejei com forças vindas de um orgulho desastrosamente ferido, e cuspi-lhe na cara.
Ainda com a pá em minhas mãos e sentada sobre sua barriga, pensei em como poderia ter sido diferente. O velho poderia ter sido gentil; ou eu poderia nunca ter saído da cidade. Mas, fora isso, outro pensamento me ocorreu: eu nunca tinha escrito para casa contando o que me sucedera em minha aventura norte-americana. E, se nunca tinha feito tal, era por vergonha de ter fracassado desde o primeiro instante que pisara na terra do Tio Sam.
Mas um relance de possibilidade me surgiu quando voltei a olhar para o velho sob mim – e agora com olhos apavorados e humilhados. O rancho, afinal, não era lá essas coisas, mas tinha uns bichos e uma sede rústica de aparência bem agradável.
Eu, então, com a pá em minhas mãos e o velho sob mim, não hesitei e lhe dei seguidas coronhadas, lembrando da amargura que seu “Go away” jogava sobre a minha existência.
Uma semana depois, quando escrevi a primeira carta aos meus familiares, a primavera chegava e eu calçava botas de couro. A neve derretera, mas ainda fazia frio. Ao acordar, eu tomava café forte e comia bacon. O silêncio era predominante. Antes das dez horas da manhã eu alimentava os animais e cuidava, especialmente, dos celeiros.
Um dia, sem que eu esperasse, um caipira chamado John passou procurando o velho que eu matara. Convidei-o a entrar e contei a história do Mr. Marshall – eis o nome do velho. Disse que ele era um tio muito querido e que, por problemas graves de saúde mental, teve que ser internado em uma clínica do outro lado do país.
“Sad, very sad”, John disse. Mas o caipira acreditou e se tornou meu amigo.
John passou e me visitar sempre que podia. Aparecia para o “brunch”, ficava a tarde toda me ajudando com o rancho e, às vezes e com o passar do tempo, ficava para dormir também.
Um dia, John propôs que eu largasse aquele solitário e improdutivo rancho. Contou sobre como ele se sentia sozinho e sobre como tinha apreço por mim. Convidou-me para morar com ele, em seu próprio rancho, que ficava ali pelas redondezas.
Não pensei duas vezes: ele tinha empregados e ganhava o seu dinheiro. As instalações de sua casa eram muito melhores do que as da casa em que eu morava. Além disso, o apreço de um homem pode ser muito útil para diversos fins. Então fiz as malas e parti, alegando, contudo, que não poderia vender o rancho de meu tio – Mr. Marshall –, pois tinha certeza de que, um dia, ele recuperaria sua saúde mental e retornaria.
Foram meses tranqüilos aqueles com John. Ele era um caipira agradável, que levantava cedo e almoçava na hora certa. Comigo por perto, ele se sentia entusiasmado em trabalhar mais e as tardes ele dedicava à produtividade de seus negócios, voltando apenas à noite. Durante esse tempo, escrevi minha segunda carta aos familiares.
Em uma dessas tardes de produção, um comprador de carne de porco foi procurar por John, mas ele não estava. Mandaram-no ir falar com a sua senhora, que era eu.
O sujeito se chamava Etan. Era jovem, era da cidade. Disse que estava de passagem, que precisava reajustar preços com John e que, então, voltaria em uma outra hora, em um outro dia.
E Etan voltou mesmo. Mas, após reajustar preços com John, Etan passou a voltar sempre pelas tardes, quando John estava trabalhando.
“You’re so pretty, you’re like those modern women”, ele dizia mexendo nos meus cabelos. E eu respondia, com brilhos olhos: “I’d love to go downtown, you know, to live there, forever!”
Em alguns meses, Etan contou sobre um apartamento que acabara de pagar. Era no Brooklyn. Logo lhe mostrei todo meu entusiasmo, e lhe parabenizei por, tão jovem, já ter seu primeiro imóvel.
Até que em uma daquelas tardes de trabalho de John, eu entrei no carro de Etan e nunca mais voltei. Fixei residência no Brooklyn e, dali, escrevi a minha terceira carta aos familiares.
E, depois de um tempo, muitas outras cartas escrevi.
Os anos em que vivi com Etan me ajudaram a migrar para Manhattan. De lá, escrevi as minhas últimas cartas. E, depois de um tempo, só isso era o que realmente importava. O resto, todo o resto, tornara-se detalhe, como sempre.


*Bruna Maria é carioca, mas não chega a ser muito fã de dias de sol. Formada em Letras, já cultivou uma média de três blogs pela rede, deletando os dois últimos por ter embirrado com a escrita. Para ela, o ato de escrever pode ser muito cruel e pouco redentor e, por isso, vive tentando desistir de se meter com as palavras. Mas não consegue.Também pode ser encontrada em: www.projetoautoral.wordpress.com / www.twitter.com/brumah
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