26 de julho de 2010

Deus e o Diabo - By David Nobrega


Conto que faz parte do próximo livro do autor David Nobrega. Para visualizar em tela cheia, |clique aqui|.

Em formato texto, aos que não estão conseguindo acesso:

Deus e o Diabo

Estava em meu botequim costumeiro, tomando minha cerveja gelada e olhando a vida passar pelas portas corrediças e enferrujadas do estabelecimento. Um vai-e-vem de gente nessas horas aqui no Centro, é coisa normal. Todos apressados para chegar em suas casas, cumprindo a rotina escravizante de cada dia. O sonho do banho quente, do chinelo largo sobre a meia furada, a comida requentada, a roupa de mendigo chique que tantos de nós desfilamos entre quatro paredes.

De vez em quando um conhecido atravessa a porta e me cumprimenta. Um entre tantos habitués do lugar. Passam por mim com um aceno de cabeça, isso quando não esticam as mãos suadas e encardidas de trabalho realizado. Uma intimidade intrometida.

Conforme a noite cai o movimento diminui e os passos apressados tornam-se lentos, dando-me tempo maior para melhor avaliar os passantes. Uma gordinha com a barriga de fora e o medonho piercing no umbigo. Um quase corcunda catador de lata faz a festa no lixo do bar, sem saber que o João, dono do negócio, separa as latas para que ele possa colhê-las, fazer a venda e ali voltar para um trago, gastando o dinheiro arrecadado nas ruas. Estudantes fazendo fila no ponto de ônibus logo ali à frente, a caminho de alguma faculdade ou supletivo noturno, buscando nos lápis e cadernos uma vida melhor.

Lá pelas tantas cervejas um tipo desconhecido entrou no botequim. Chapéu preto lhe cobriam os olhos e um longo sobretudo, também preto, lhe tirava os contornos do corpo. Seus pés, logo notei, pareciam cascos de bode e quando passou por mim senti mesmo um certo cheiro de enxofre que dele se desprendia. Seguindo-o com o canto dos olhos, vi que caminhou até os fundos do bar, onde estão as mesas de bilhar, olhou ao redor e, parecendo não encontrar ali o alguém que buscava, voltou para a frente, onde eu estava sentado. Bateu com as mãos finas e compridas no balcão, pediu um conhaque e puxou a cadeira de frente à minha, perguntando se me importava que ele me fizesse companhia até quando um seu parceiro chegasse, como combinado. Respondi que não, com um aceno de ombros.

-- Pois então, Maurício. Como anda a vida? -- Me perguntou, como se me conhecesse.

-- Vou bem, vou bem... E o senhor... Como devo chamá-lo?

Afastando um tanto o chapéu preto pra o topo da cabeça, me deixando ver seus olhos vermelhos como brasa, respondeu:

-- Ora, Maurício! Achei que tivesses me reconhecido. Sou o Diabo! Vês? -- Erguendo mais um pouco o chapéu pude ver duas pequenas saliências à guisa de chifres, logo acima da linha de seus cabelos oleosos. -- É verdade que nunca antes nos encontramos pessoalmente, mas achei que pudesses ter notado...

-- Desculpe -- lhe respondi, com certa vergonha -- Até notei certas coisas estranhas em sua pessoa, mas não acredito em diabos, demônios e afins. Deves estar me confundido com algum seu conhecido. Do circo talvez?

-- Circo? Mas que disparate! Sou o Senhor das Trevas e da Escuridão! Deverias me temer! -- O aumento do cheiro de enxofre no ambiente estava ficando insuportável. Pareceu-me que meu interlocutor tivesse algum problema intestinal. Dizem que todo mundo tem um ponto sensível ao stress, e o desse camarada com certeza eram os intestinos...

-- Ok, ok. Não vamos nos desentender, não é? Afinal, acabamos de nos conhecer e começamos com o pé errado. Se queres que te chame de Diabo, Cão, Lúcifer ou seja lá quem quiseres, é só dizer. Mas por favor, controle esses gases. Os clientes vão acabar achando que os ovos coloridos que o João serve estão estragados.

-- Por Mim! Não entendes, ó imbecil, que tenho o poder do Mal a meu favor e que basta um estalar de dedos para que te mande ao Inferno! Mas deixa estar, que esta noite tenho mais coisas a me preocupar do que um reles descrente.-- Dito assim, virou de um só gole o conhaque que restava no copo e esticando o dedo imenso para o alto pediu ao João para que o servisse de mais uma talagada.

De meu lado, estava filosofando botequinescamente, tentando imaginar como poderia uma pessoa ficar louca de pedra ao ponto de se achar o próprio demo. Como os médicos dizem que é melhor nunca contrariar, tentei mais uma vez entabular conversa com o estranho:

-- Pois então, Diabo. Que o traz a esta parte do mundo em uma noite tão bonita como esta? Por acaso alguma alma fugidia, talvez?

-- Não -- disse-me ele -- Marquei com Deus aqui hoje. Seu mundo está indo tão mal que precisamos encontrar uma solução. O ser humano tem conseguido fazer mais maldades do que eu mesmo. Ou nós damos um basta nisso, eliminando vocês todos e começando de novo, ou daqui a pouco vocês explodem o Planeta. E aí, onde é que nós faríamos a guerra santa entre o Bem e o Mal, não é verdade?

-- Ahhhh, entendi... Deus vem aqui hoje também? -- perguntei, fingindo perplexidade.

-- Vem, vem sim. Deus adora um bilhar. E por falar no Diabo...quero dizer, em Deus, olha ele ali, estacionando. Metido a besta...

Uma reluzente Ferrari vermelha tentava enfiar-se em uma vaga que nem mesmo um fusca caberia. Até acreditei que fosse Deus quem estava ao volante, pois realmente tendo em vista o quanto o ser humano estava no caminho errado, o motorista teria que ser muito ruim. Depois de várias manobras e alguns empurrões nos carros que ali estavam, amassando frente e traseira da pobre Ferrari, Deus -- ou seja lá o nome que o recém chegado assumisse -- desligou o motor, descendo com um sorriso satisfeito, como se tivesse feito um bom trabalho. Viu o Diabo sentado em minha mesa e acenou, saltando a água que corria pelo meio-fio e vindo em nossa direção. Deus, o onipresente, onisciente, oni qualquer coisa, chega em seu carrão, um cara presença, vestido como John Travolta em "Embalos de Sábado a Noite".

-- Bel, quanto tempo! Olá Maurício, prazer em te ver. Você tem sido uma boa pessoa, mas por favor, pare de bolinar dona Carol. Muito feio isso.

"Esses caras devem ser de alguma agência do Governo. espiões. Como a gente lê nos jornais, vez por outra. E a dona Carol é viúva, porra. Que mal tem em dar umazinha de vez em quando?" -- Assim pensava eu enquanto via os dois se cumprimentarem como velhos amigos. Deveriam realmente se conhecer há muito tempo ...

-- Certo, aqui estamos. Vamos discutir nossas questões enquanto jogamos um bilharzinho valendo a bebida? -- Perguntou Deus ao Diabo -- Maurício, se não te importares, gostaria que tu te mantivesses conosco. É sempre bom ter testemunhas ao se fazer tratos com o Diabo -- disse, com um sorriso maroto.

-- Ele não pode testemunhar por ti, God. É um descrente. Ele não crê em Mim. Duvido que creia em Ti também.

Eu, na realidade, estava começando a me divertir com a situação. Dois malucos, aparentemente com dinheiro para bancar uma cervejas a mais. Eu podia aguentar isso, logo:

-- Vejam bem: em minha situação de ateu -- desculpa ai Deus, mas não devo mentir, não é? --, eu sou a melhor testemunha que vocês poderiam achar. Sou isento e imparcial. Fico no meu canto, só ouvindo e bebericando uma gelada, enquanto vocês discutem os segredos do Universo, amém?

Rindo, os dois concordaram comigo. Pedi para ir na frente, pois o fedor de enxofre do Diabo, somado ao excesso de perfume barato que Deus usava estava me dando enjoos. Abri um cadeira de metal que o João costumava deixar ali, puxei uma caixa de bebidas vazia a guisa de mesa e pedi uma cerveja. Deus aproveitou e pediu uma água tônica -- agora eu sabia porque Deus era tido como mal-humorado: ele não bebia -- e o Diabo mais um conhaque, onde pediu umas gotas de limão, para evitar a gripe, segundo ele.

Colocaram uma ficha, arrumaram as bolas e no par ou ímpar, a saída foi do Diabo:

-- Escuta God, antes de mais nada é bom que tu saibas que essas desgraças todas que tu tens visto por aí, como sequestros, acidentes de trânsito e o teu time perder não são culpa minha. Eles -- o "eles" com um sinal indicativo para mim, quieto em meu canto -- é que realmente perderam a cabeça.

Deus -- ou God, como o chamava o Diabo -- olhou para mim com o cenho fechado e depois para o Diabo -- o Bel, de Belzebu. Baixou a cabeça, pegou o giz e esfregou a ponta do taco, por um longo tempo. Encaçapou quatro bolas antes de dizer alguma coisa:

-- Olha Bel, tu sabes o quanto discordo de teus métodos. E também sabes do quanto prezo a vida deles (nova olhadinha de canto para meu lado). Não te esqueças o quanto trabalhei para que houvesse condições para que eles existissem. Não sei se exterminá-los, como tu dissestes por e-mail, resolveria o problema.

-- "Quanto trabalhei"? Tu os fizeste em apenas um dia, lembra? "E no sétimo, descansou...". Tu tens descansado desde aqueles tempo e a não ser por um Noé aqui ou um Abraão ali, a única coisa que fazes é desempenhar o papel de inalcançável!

E matando duas bolas, com uma ótima tacada de canto e outra de meio de mesa, o Diabo continuou:

-- Vês a posição em que me encontro? Tudo em sido culpa minha. Guerras, tudo bem. Assumo. Mas a concorrência com a maldade dessas tuas crias está me deixando maluco.

Dei uma gargalhada. Não pude mesmo me conter. Os dois olharam para mim com seriedade e com o indicador sobre os lábios, Deus pediu que me calasse.

-- Tu tens todo o direito de reclamar. Dou-te quase toda razão da qual sou capaz, Bel. -- Mais duas bolas para Deus. Ótimo efeito na branca, a la Rui Chapéu. -- Mas sinto, extermínio está fora de questão. Eu dei a eles o livre arbítrio e se eles quiserem se matar, o problema é deles e as almas serão tuas. E não negocio isso.

Mais uma vez o enxofre impregnou o ambiente. O Diabo deveria estar suando. Perguntei se ele não gostaria de um refrigerante, mas recebi um "Pros Infernos!" em resposta.

Depois da quarta partida, todas ganhas por Deus, a discussão começou a me enfadar. Já estava bêbado além do razoável e se eu chegasse em casa um pouquinho pior com certeza a Selma me poria para dormir na sala. Eu detesto dormir na sala, assim me levantei e estava já dizendo boa noite, quando com apenas um movimento mínimo de sua poderosa mão, Deus me fez sentar novamente. Lutei para conseguir me botar de pé, mas algo invisível e extremamente forte me aprisionava. Tentei falar, mas minha voz não saia. Olhei em torno para pedir ajuda, mas todos os que eu podia ver de onde estava, pareciam como que feitos de pedra, parados.

Olhei para os dois jogadores e suas formas pareciam estar mudando. Deus parecia mais luminoso, enquanto o Diabo, a este ponto tão bêbado quanto eu, parecia absorver a luz do ambiente.

Pelo que entendi houve um impasse: como Deus não queria o mal para nós, os humanos, e o Diabo queria nosso fim as forças se igualaram e o embate equilibrou-se. Começaram, cada um de seu lado, a aumentar suas forças para vencer ao oponente, fazendo assim que nossa realidade, nosso "agora" se alterasse. Como eu sei disso? Não tenho a mínima ideia. Esses pensamentos surgiam e me tomavam de assalto, incontidos pelos filtros de minhas crenças -- ou falta delas. Era possível sentir uma grande força correndo o ambiente, uma vibração que me deixava os cabelos em pé.

De repente surgiu uma criança, carregando um ramo de flores. Atrás dela, muitos belos seres, vestidos de um branco luminoso, encheram o pequeno corredor do boteco.

Deus e o Diabo notaram a mesma coisa que eu, pois embora me mantivessem preso à cadeira e os outros humanos continuassem paralisados, voltaram às suas formas 'normais'.

O Diabo, erguendo as sobrancelhas, olhou para Deus que, soltando uma gargalhada, fez sinal com a mão para que abrissem caminho a alguém que se mantinha atrás da estranha multidão. Postados lado a lado na estreiteza de espaço, formaram passagem a uma belíssima mulher, também de branco e em cujas mãos carregava uma bolo ricamente enfeitado, que se aproximou. Sorrindo sempre, colocou a encomenda que trazia sobre a mesa de bilhar. Em um passe de mágica acendeu várias velas que eu tenho certeza não estavam ali. Ao mesmo tempo, todos cantavam "Parabéns a você...".

O Diabo, olhos marejados, atirou-se aos braços de Deus:

-- Seus, seus... Seus safados! Achei que vocês tinham se esquecido! Que surpresa adorável...

Deus, sacudindo o Diabo pelos ombros, disse:

-- Meu irmão, não é sempre que se faz 6.000 anos. Acredita mesmo que não iria me lembrar! Eu sou onisciente, seu tonto.

A festa durou muito tempo. Não sei precisar exatamente quanto, pois me parece que a medida de dias, meses e anos às gentes do Céu e do Inferno não tem sentido e durante toda a festa, "nosso" tempo parou. Perguntei depois a outros que ali estavam naquele dia, mas ninguém tem lembrança de nada, como se nada tivesse ocorrido. Eu mesmo não tenho lembranças de como terminou tudo aquilo. Só me lembro de ter acordado no sofá de casa, com a Selma me falando horrores das más companhias com quem tenho andado, como aquele bêbado charmoso que tinha uma Ferrari toda amassada.

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