18 de julho de 2010

É sempre assim - By Denison Mendes

É sempre assim

* Denison Mendes

Acordo pela manhã e ela está ali, desesparramada, suspensa do chão. Levanto. No descaminho do banheiro tropeço em calça, sapatos, bolsa, látex, batom, brinco, bugigangas, garrafas, cinzeiro, baganas. O despertar do espelho espreguiça um olhar nada bom. Noto uma pequena rachadura no canto direito, acima. Nada de mais. Não vai precisar pontos, eu acho. Bom, isso é coisa que não se comenta.

Revolto. Dorme ainda. Sento. Santa folha em branco, o preto a libertará da anemia. Doença grave para quem escreve. Cometo com um anão e anoréxico lápis.




Regressa a graça minha

Ó, musa de mileumanoitescas fantasias

Teu palácio ainda é oco

Tua catedral ainda é eco

Tua taba ainda é oca

Veste a nossa quimera de outrora

Dentro de mim ainda há a espera

Agora

Vem na primeira nuvem desnudada

Dá-me meu castigo

Não da pedra nem da perda

Prenda-me em teus abraços

Lassos e de laços

Líquidos inebriantes

Eu grito

Volta
...
Rascunhei-me ali naquela alva e muda página. Estas letras e palavras entrecortadas por espaços e pausas são lágrimas a ensanguentar a minha não mais adormecida dor. Oh! mundo de cruel, digo entre risos.

Ela acorda. Cheirando a anteontem para lá de trás dos montes. Bom, você sabe isso...

Abraçou-me e beijou minha boca com gosto de madrugada vencida e eu já com sabor de tédio. Desvencilhei-me dela como quem diz: não quero me aquerenciar agora. Ela entendeu, contrariada. Não levei a sério, mulher está sempre contrariada.

Depois desta cena memorável de afeto, mostrei-lhe o que havia escrito. Ela olhou, leu, releu, benzeu e professoral anunciou: não entendi nada!

Pô, não ri!

E continuou: mas está maravilhoso, meu amorzinho querido. És um gênio.

Viu? Eu disse para não rir.


Depois disso, fizemos amor selvagem como se estivéssemos na savana africana. E depois do depois disso, liguei para a Ritinha e mandei ela à merda. E queimei o poema que fiz para ela, sob um olhar incrédulo, da paisagem escultural de mármore sobre a cama.


*Denison Mendes, 39 anos, jornalista em formação antropossociológica e política. Um indivíduo do seleto grupo dos comuns em meio a celebridades de raridades instantâneas. De uma cosmoprovíncia, a pintar em português.

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